Já estou de saco cheio! Acabo de ouvir
um índio na TV. Ele está num bom pedaço de terra, por detrás corre um rio,
crianças brincam no terreiro, árvores por todo lado. Ele diz:
“Há mais de vinte anos os nossos antepassados
estão sepultados aqui; não é ali, nem lá, é aqui. Então essa terra onde nossos
ascendentes estão enterrados é nossa, por isso lutamos pela sua demarcação”.
Há tempo essa teoria me irrita, me tira
do sério, o mesmo se dá com a aceitação oficial e unânime dessa regra burra.
Ora, senão vejamos: grosso modo, em geral tudo que está debaixo da terra é
fóssil. Nós construímos nossas cidades sobre cemitérios, por cima de cadáveres
em decomposição. Todos nossos avôs, bisavôs, tataravôs, estão debaixo de nossas
casas. Isso é parte da história da humanidade. Então, por que se aceita um
argumento tão simplório para ‘demarcar’ as terras indígenas?
Nossos antepassados também estão
enterrados aqui, Brasil afora, os antepassados negros, os judeus, os antepassados
árabes, os chineses, os japoneses, os antepassados dos antepassados, o homem
das cavernas. E daí? A terra é de todos, a terra é sagrada. Índios,
quilombolas, caiçaras, negros escravizados, chinas, carcamanos, japas, todos
temos ascendentes que hoje estrumam as terras para uma boa safra de soja e
milho. E daí? Se formos seguir esse argumento o certo é devolver todo o Brasil
aos índios, né?
Num documentário o índio defende a tese
de que o Brasil não foi ‘descoberto’, mas ‘invadido’. Nem um nem outro meu caro
tocador de apito. Temos que ver como a sociedade e o estado estavam
constituídos na época. Nos anos 1.500 o mundo já estava organizado socialmente,
seja como reinado ou nação e o conceito de pátria não era arraigado, mas
existia, apesar de feudal. As terras ao sul do Equador, principalmente no que
viria a ser o Brasil, não tinham a mesma forma de governo - alguns, como em
Pindorama, nem governo tinham. Os impérios inca e asteca eram organizados por
políticas originais típicas: os fundamentos de domínio eram a religião e o
poder opressor.
Aqui entre nós, esse lado bobo da
história indígena começou quando o marechal Cândido Rondon organizou e chefiou
a famosa expedição desbravadora, com a finalidade principal de implantar linhas
de telégrafos Brasil afora, invadindo florestas, atravessando pântanos,
morrendo de doenças, flechas envenenadas, onças e jacarés, comendo macaco e
pegando malária. A finalidade sub-reptícia – o plano secreto – era mesmo
subjugar os índios ‘civilizando-os’, inserindo-os na sociedade. Foi por isso
que o marechal Rondon introduziu a política de tutelar o índio, difundido a
imagem de que se tratava de povos primitivos, ingênuos como anjos celestiais,
inocentes como Adão e Eva no paraíso, carecendo, pois, da proteção do Estado.
Esse roteiro foi seguido pela maioria de nossos indigenistas.
Como se viu pouco depois, o índio era
mesmo um povo primitivo, ingênuo como anjos celestiais, inocente como Adão e
Eva no paraíso, que Rondon nos fez imaginar – mas apenas em seu gene, pois não
tinha nenhuma imunidade contra doenças dos ‘brancos’ – a cada contato, centenas
foram dizimados por tifo, diarreia, gripe, pneumonia, um resfriado simples.
Morte que as roupas brancas com que Rondon vestia as tribos não conseguiram
evitar... Todo esse paternalismo foi apadrinhado pela frase positivista (ou
cabotinista?): – “Morrer se preciso for, matar nunca!” Foi essa frase que
serviu para incutir um conceito de ‘pena’ que merecia o índio brasileiro,
sendo assim apresentado à sociedade, que deveria acolhê-lo como pessoa ingênua
e desamparada.
Darcy Ribeiro pôde convencer o
presidente Getúlio Vargas para ver o sonho de uma grande reserva indígena ser
criada, como de fato se deu e hoje é o Parque Nacional do Xingu, palco de
filmes, romances de cavalaria e novelas. Darcy defendeu por muito tempo a tese
de que ninguém melhor que o índio poderia preservar e cuidar das florestas, seu
elemento natural. Felizmente o caboclo de Maricá não sobreviveu para assistir
aos índios de outras reservas negociando com madeireiras e mineradoras, com a
ambição de um grileiro qualquer, que invade a terra da união para arrasá-la,
depois sair sem deixar um benefício sequer.
Já viajei muito pelo interior do país
(pelo chão e não via aérea), peguei muita estrada, engoli muita poeira,
atravessei reservas indígenas sem pagar pedágio e acredite, nunca encontrei um
índio, um caboclo, um quilombola que fosse bobo, ingênuo e inocente como Adão e
Eva no paraíso. A cara sim é de ingênuo, os gestos e a fala malandra, de quem
finge não conhecer o mundo, o olhar de espanto: – É mesmo? – num teatro que a
vida ensinou ante a cruel esperteza de quem chegou ali antes, arrasando,
matando e roubando.
Os interioranos aprenderam a lição.
Nessa andança esbarrei com pobres e com a pobreza, conversei com gente que não
sabia ler e gente letrada, com família que comia pouco e se vestia simples,
outros, mais abastados, na moda, mas nunca topei com um bobo, um trouxa, um
otário. Muito pelo contrário, quando eu dava mole eles me comiam com casca e
tudo: que o diga a dúzia de abacaxis docinhos que comprei na beira da estrada,
mas que depois em casa milagrosamente se transformaram em ananás.
Aquele ser ingênuo que aparecia nos
filmes em preto e branco desapareceu há muito, quiçá jamais existiu. Depois de
tanto ser enganado – como o foram os incas e os astecas –, depois de trocar
ouro e prata por vidrilhos, depois de oferecer as donzelas e “suas vergonhas,
tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras”, esse ser se
transformou em Macunaíma, que o diga Mario de Andrade! O Jeca Tatu de
Monteiro Lobato virou Mazzaropi, o jeca filho de emigrantes que se fingia de
bobo, mas ao fim vencia todas.
Agora, essa reserva de autoproteção tem
seus fundamentos. Basta ver o lado político da coisa, pois está claro que as
terras ‘demarcadas’ na verdade será propriedade do governo, do Estado. Assim,
ao retomar as terras indígenas invadidas por grileiros – grandes fazendeiros e
plantadores de grãos – para depois ‘demarcá-las’ e transformar em reserva
indígena, na verdade o que o governo faz é ‘desgrilar’ a terra, retornando-a ao
poder público, como também as suas riquezas a serem exploradas, dependendo de
qual pirata estiver no Palácio do Planalto, em Brasília.
Isso não diminui a minha irritação, meu
pré-infarto. Ainda acho que ir à TV dizer que “os nossos antepassados estão
sepultados aqui, então essa terra é nossa” é uma mentira deslavada, pano de
fundo para ambições, dinheiro e política; conversa mole pra boi dormir. Uma
curiosidade é que não se vê registro de nenhum conflito entre os grupos que
fazem a reivindicação: as terras a serem demarcadas para o índio nunca estão em
Quilombos, os quilombolas jamais reivindicam terras reclamadas pelos índios.
Mas a história desmente esse fato: escravos fugidos buscavam refúgio em tabas,
eram bem acolhidos, ficavam amigos e até casavam com índias.
Isso porque o índio brasileiro sempre
foi um povo nômade, por vários motivos. Primeiro, tinham toda a terra
disponível para si e viviam em pêndulo de acordo com as condições climáticas.
Segundo, os inimigos eram poucos, as guerras se travavam justamente em disputa
pela terra mais fértil. Agora estamos na modernidade, mas a ambição política é
a mesma desde Brutus, Maquiavel, Bush, Putim, Lula. Nós (e vocês) somos apenas
bucha de canhão. Nosso latifúndio mede apenas sete palmos de fundura, ou um
retângulo nas paredes dos cemitérios superlotados.
Então esse refrão repetido por índios,
quilombolas, caiçaras e outros ‘povos’ que querem as ‘suas’ terras de volta,
fiquem sabendo: a terra só foi de vocês antes de Cabral aportar e trazer a
reboque as piores quadrilhas da Europa, da qual herdamos todas as podridões
políticas – coisa que nem Shakespeare poderia imaginar.
Acho bom o índio retornar aos velhos
costumes e se satisfazer com apitos, colares de vidro, facas e panelas. Nos
quilombos sei que não faltará um bom terreiro, Linha branca, Nagô, Mina, onde –
ao som do xeroquerê, do agogô, dos atabaques e ganzás, do afoxé e adjá – possam
cultuar suas entidades, os Caboclos, Pretos Velhos, os Exus, as Pombas Giras
Ogum – e também o Zé Pelintra – melhor símbolo do esperto não há!
Que seja assim, em paz, que se enfeite
o país com suas tradições, sem precisar formar currais onde se isolem
prostituídas as gentes que fizeram a amada terra desigual chamada Brasil.
Fazer o jogo do poder é retornar à
servidão mais cruel por onde todas as gerações transitaram, para um dia pensar
em liberdade.
Fazer o jogo do poder é eternizar a
separação de tipos, de religião, de tradição e do bem cultural.
Fazer o jogo do poder é perder a
identidade, o caráter; foi essa a razão porque Macunaíma, desencantado, ficou
triste e doente. É esse o retrato do Brasil – que Mário de Andrade previu –
agora querem repetir?
“Macunaíma amanheceu com muita tosse. Maanape
desconfiou que o herói estava hético. Era impaludismo e tosse, por causa da
laringite que a gente carrega de São Paulo. Macunaíma passava horas
deitado de borco na proa da igarité, nunca mais havia de sarar. No outro dia
atingiram as cabeceiras do rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era
ali. Um passarinho sirigaita trepado na munguba, enxergando o farrancho gritou
logo: - Sinhá dona do porto, dá caminho pra mim passar! Macunaíma agradeceu
feliz. De pé ele assuntava a paisagem passando. Afinal ficou tudo
conhecidíssimo. Enxergou o cerro manso que fora mãe um dia, no lugar chamado
Pai da Tocandeira, enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias
escondendo os poraquês e os pitiús e pra diante do bebedouro da anta se viu o
roçado velho agora uma tiguera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma
chorou”.